sábado, 18 de dezembro de 2010

Juventude: uma categoria dinâmica


            Na atualidade, lançamos um olhar ao nosso redor e vemos uma juventude mais diferente e plural do que a da última geração. São diversas tribos, ethos e maneiras de viver que se cruzam e se chocam na dinamicidade da sociedade da informação.
            Entretanto, alguns questionamentos podem ser levantados. Entre eles se encontra uma pergunta bem original: a categoria juventude sempre existiu?  A juventude tem o seu aparecimento somente no século XVII com o surgimento das primeiras escolas. Segundo os historiadores, foi neste momento que o limite entre o mundo infanto-juvenil e o mundo adulto ficou mais definido. As escolas são as responsáveis pela criação da cultura jovem e até hoje estão relacionadas com a manutenção deste cenário, agora diante de diferentes atores sociais. Assim, juventude é uma categoria nova nas sociedades ocidentais.
            A noção de juventude está relacionada não apenas com a idade biológica, mas também com a idade social. Por essa razão, é um objeto de reflexão muito complexo. Esta noção vem sendo elaborada e examinada pelas ciências sociais desde o começo do século XX.
            Um estudo clássico da antropologia sobre a vida juvenil foi realizado pela pesquisadora americana Margarete Mead, nas ilhas Samoa. Desde então, diversos estudiosos dedicaram-se ao estudo atento dessa categoria.
            A juventude vem sendo objeto de estudo das ciências sociais por muito tempo. Pierre Bourdieu afirmou certa vez numa entrevista que a juventude era apenas uma palavra, o que levantou um debate sobre as possibilidades desta categoria ser algo além de uma construção social criada a partir dos conflitos entre novos e velhos.
            Quando falamos em juventude precisamos lembrar que esta categoria não é composta por um grupo homogêneo. Existem diferenças entre a noção de juventude dentro das classes sociais, dentro dos gêneros e também em relação as faixas etárias.
            Vamos tomar como exemplo as diferenças entre as classes sociais; nós temos duas situações diferentes para analisar: o jovem da classe popular ele faz sua entrada no mundo adulto ainda muito cedo. Com a sua entrada no mercado de trabalho de forma ainda precoce, logo ele assume as responsabilidades do mundo dos adultos e tem a sua maturidade antecipada. Este jovem fica menos tempo na escola e casa mais cedo, sendo também os pais mais jovens dentre os outros jovens. Ele é considerado um “jovem não juvenil”.
            Quanto ao jovem das classes média e alta, temos um novo fenômeno, examinado pela sociologia e antropologia. A chamada geração Z, ou seja, os nascidos a partir da década de 80, constituem um grupo que posterga a sua entrada na maturidade social, graças a uma série de condições que favorecem um maior tempo de estudo e um planejamento mais demorado para o ingresso na vida adulta. Este jovem vem adiando cada vez mais a saída da casa dos pais como uma forma de evitar assumir determinadas responsabilidades e aproveitar de forma mais intensa as vantagens que o mundo dos solteiros pode oferecer.
            Muitos destes jovens das classes média e alta, quando enquadrados em um critério etário, não são mais tão jovens, mas permitem demorar-se curtindo a sua “juventude”. Segundo alguns autores, eles seriam “não jovens juvenis”.
            O mais importante é lembrar que não existe uma única definição sobre o papel do jovem na atual sociedade. Podemos acreditar que todas as formas de viver são possíveis, desde que a autonomia e o desenvolvimento humano seja assegurado para esta categoria que é a construtora do hoje.

 Texto original publicado no Jornal Iluminatti. Natal. Novembro/Dezembro, 2010.








sábado, 20 de novembro de 2010

As Pedras da Fortuna

Eu era adolescente e ainda lia a revista Capricho quando vi uma edição especial na banca, toda dedicada ao estilo francês de viver. É claro que não resisti, principalmente por ser uma admiradora da cultura e arte francesas.
Além dos assuntos ligados a moda, o que mais me chamou atenção foi o endereço de um clube de correspondentes internacionais, o nome é International Pen Friends, também conhecido pelas siglas IPF. Fiquei bastante curiosa com a possibilidade de estabelecer contato com pessoas ao redor do mundo e o que era mais fascinante em tudo isso: ainda não havia e-mail! Toda a troca de correspondência seria feita através de cartas, carimbadas no correio e com muitos selos.
Tudo aconteceu no ano de 1998 e as coisas estavam muito agitadas em torno da minha vida familiar e pessoal, por essa razão, recortei aquele endereço e o guardei para o dia que teria paz e tempo suficiente para tratar daquilo como um assunto sério. Afinal o valor mais importante que estava diante de mim naquela ocasião chamava-se família.
No ano seguinte escrevi uma carta para a representante do IPF no Brasil: Joina Moura. Fiquei extremamente surpresa com a rapidez da resposta e muito ansiosa para preencher o formulário com os países que eu mais desejava conhecer: países da costa africana, Portugal, Grécia, Egito, Austrália, Inglaterra, Alemanha e, França, é claro.
Na minha primeira lista não tinha nenhum correspondente do Egito ou da Grécia, o que de certa forma foi um decepcionante. Mas havia muitos contatos dos outros países, alguns deles se transformaram em amizades duradouras, como é o caso da amiga lisboeta Ana Isabel. Entretanto, a surpresa maior foi receber uma carta de Jerusalém. Eu não havia escolhido o estado de Israel, mas alguém de lá havia escolhido um contato no Brasil e o IPF acabou enviando meu endereço para esta pessoa.
O nome do meu pen  pal é Stelios Odeh. Um cipriota , um pouco mais jovem do que eu e que morava nos arredores da cidade velha de Jerusalém. Meu novo correspondente trabalhava no hotel Glória e em poucos meses nos tornamos muito amigos. O que o diferenciava de todos os outros? A seriedade com que ele tratava a amizade entre as pessoas. Um dia, ele me enviou duas pedras, e disse que eram as “pedras da fortuna”, retiradas da área do Mar Morto. Segundo Stelios, enquanto dois amigos mantivessem suas pedras consigo, a amizade deles existiria para sempre, mesmo que fosse apenas na memória e no coração.
Continuo com as minhas pedras bem perto de mim. É a única maneira de lembrar deste amigo, que perdi o contato desde que a violência entre judeus e palestinos se intensificou em Israel. A última carta que recebi dele foi em junho de 2002, e dizia que a situação em Jerusalém estava insuportável com os constantes atentados e as sucessivas mortes de seus amigos e colegas de trabalho.
Quando li aquela carta, eu chorei. Sabia que meu amigo Stelios Odeh estava se despedindo de mim. Escrevi para ele em seguida, mas não obtive resposta por muitos anos. Dele sempre lembro, praticamente todas as vezes que toco nas nossas pedras dos amigos, mas lembrei dele de forma especial quando reencontrei uma antiga carta, a partir dela me veio a lembrança do valor da amizade.
Não precisamos deixar as pessoas sumirem de nossas vidas para dizermos o quanto elas são especiais. A amizade é um bem precioso e deve ser construída dentro de nós, de forma que ela possa se transformar numa riqueza, do tipo que faça sentido apenas para duas pessoas, uma riqueza mais valiosa que duas pedras frias retiradas de um mar que nem vida tem.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Três dias auspiciosos

Todos nós somos fascinados pela influência de determinadas datas em nosso cotidiano. Existem algumas épocas que nos excitam pela festividade que as acompanham, como o carnaval e os festejos juninos no Brasil; outras datas que nos empolgam pelo seu simbolismo, como a semana santa e as festas natalinas e há até aquelas que nos remetem ao nosso dever cívico, como os feriados de 7 de setembro, com o seu desfile em praça pública e a celebração da proclamação da república brasileira, pelos militares golpistas no 15 de novembro.
Particularmente sempre prestei bastante atenção a estes momentos, alguns deles marcados pelo rito e pelo afloramento de sentimentos variados por parte das pessoas. Lembro ainda quando criança o quanto eram importantes três dias: Dia das bruxas, dia de todos os santos e dia de finados. Normalmente íamos para a igreja, acendíamos velas em casa para nossos parentes mortos, não ouvíamos músicas ou comemorávamos qualquer coisa. O respeito pela morte dos outros era o motivo central para nos silenciarmos naqueles dias, ou pelo menos no dia de finados. Afinal, no portão de um cemitério paulista está escrito: "Nós que aqui estamos, por vós esperamos". Não é esta uma verdade?
Mas neste ano pude observar o quanto o pesar pela morte ou desencarnação de nossos parentes e amigos, tem sido pouco sentido por muitas pessoas. Além da movimentação e do comércio nos cemitérios locais, o clima não estava nada fúnebre: era apenas um grande feriado. Isso nos mostra o quanto estas práticas culturais e religiosas perdem o seu sentido diante de um mundo cada vez mais interligado. 
Do começo desta semana, ou seja, do domingo (31.10), passando pela segunda (1º.11) até a terça-feira (2.11), vivemos a sucessão de três dias auspiciosos: Dia das bruxas; Dia de todos os santos; Dia de Finados.
E qual o significado destas três datas? Por quais motivos elas aparecem juntas no calendário ocidental?
A origem remonta à Europa antiga. Segundo alguns especialistas, o povo celta que habitava a Grã-Bretanha, acreditava na existência de forças malignas e espíritos do mal. Os celtas acreditavam que os espíritos dos mortos abandonavam suas covas no cemitério na última noite do verão, ou o Samhain (31.10) para buscar os vivos. Existiam muitas deidades entre eles, as fadas eram consideradas bem reais, não apenas como parte de uma tradição oral, mas como seres que partilhavam o mesmo espaço que os celtas. Para eles, existia outro mundo, o "Otherworld" era habitado pelas divindades e os espíritos dos mortos descansavam nesta terra de sol constante e calor intenso. 
Com a cristianização, os seres da mitologia celta foram transformados em demônios e as fadas em bruxas. O dia 31 de outubro, ficou conhecido como Dia das Bruxas e as pessoas passaram a colocar determinados tipos de objetos para afastar a presença destas entidades de suas casas.
 Assim, a Igreja Católica tratou de criar um dia para a celebração de todos os santos cristãos, provavelmente no século IV, numa tentativa de arrastar as pessoas para seu modelo de crença, a partir do exemplo dos primeiros mártires e religiosos católicos. Séculos depois, ela estabeleceu um único dia para a celebração aos mortos. Desta vez, os vivos fariam o caminho inverso: visitariam os cemitérios com flores, velas e preces, como oferendas para os espíritos dos parentes mortos. Os mortos não retornavam mais para fazer mal aos vivos. Eram os vivos que  ultrapassavam o limiar e se encontravam no espaço da morte, para rememorar aqueles que tinham vivido entre eles.
Lendo o Dicionário de Simbologia de Manfred Lurker, fica claro para mim que os dias que vão de 31 de outubro até 02 de novembro tratam da morte e da sua representação em diferentes contextos históricos e sociais e o que é mais importante, ela é tomada como a ponte entre o mundo do além (otherworld) e o mundo dos vivos, ou nas palavras de Lurker: "apenas uma passagem para outro estado".

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O medo é a danação do povo

Comecei a votar apenas aos 19 anos de idade, mas sempre fui politizada e engajada na busca de uma democracia de fato mais representativa, do que cenográfica. Digo cenográfica não desrespeitando os verdadeiros atores e atrizes que fazem arte da vida e nos brindam com a mesma. Falo cenográfica no sentido da farsa quixotesca que vem sendo montada e encenada por muitos anos pela direita deste país. Uma direita que qualquer estudante de história sabe o quanto corcordou com os desmandos durante o regime militar e mesmo após o movimento das Diretas Já, sempre esteve implicada com o interesse dos grandes grupos econômicos  que controlam o Brasil.
Agora, mas do que nunca, me assombra a onda difamatória que está sendo levantada contra a candidata petista Dilma. Um tsunami de mentiras forjadas e de um passado redesenhado. Isto já foi feito com o atual presidente em exercício, e como a fórmula funcionou, os direitistas querem espalhá-la novamente. Seria fórmula ou veneno?
E o que quero com este post? Pedir que cada um dispa-se de seus preconceitos e visões limitadas em torno das pessoas e fique atento ao que os livros de história nos trazem. A roda da fortuna favorece o Brasil neste momento, não apenas pelo sucesso do plano Real, mas pela conjunção de diversos fatores e pela administração que foi realizada pelo governo Lula nos últimos oito anos. Compare a sua vida durante a gestão de FHC com a realidade que você vive hoje. Anote os êxitos e os fracassos e veja onde mais cresceu. Assim será capaz de avaliar um pouco a mudança, sem precisar ter medo do novo. Sem precisar ter medo da Dilma. O medo é a danação do povo. Lembrem-se disso.
Segue texto interessante para leitura.
Um bom voto para o Brasil:




08.10.10 – BRASIL
Eleição, aborto e a infantilização da religião
Jung Mo Sung *
na Adital, por sugestão da leitora Adenilde Petrina 
Por que bispos, padres e grupo religiosos que sempre defenderam a separação radical entre a religião e política, que sempre criticaram a discussão política no âmbito da Igreja ou até mesmo a relação “fé e política”, estão fazendo, até mesmo nas missas, campanha aberta contra Dilma?
Uma primeira resposta poderia ser: hipocrisia. Respostas moralistas podem satisfazer o “juiz moralista” que todos nós carregamos no mais profundo do nosso ser, mas não são boas para nos ajudar a entender o que está acontecendo.
Esta campanha contra a candidatura da Dilma, e com isso o apoio explícito ou implícito à candidatura do Serra, está sendo feita de várias formas, mas com um elemento comum: os católicos e os “crentes” não devem votar nela porque ela seria a favor do aborto e, por isso, contra a vida. Alguns agregam também a acusação de que, se ela for eleita, as TVs católicas e evangélicas seriam proibidas de veicular os programas religiosos ou obrigadas a diminuir o seu tempo de duração. É a velha acusação de que “comunistas” são contra a religião.
Essas duas acusações são expressas e justificadas através de lógicas religiosas, e não a partir da “racionalidade leiga” que deve caracterizar a discussão sobre a política hoje. Esses grupos não admitem a distinção entre a religião e a política, ou melhor, não admitem a “autonomia relativa” do campo político e de outros campos -como o econômico- que se emanciparam da esfera religiosa no mundo moderno. Por isso, eram e são contra “fé e política” ou o debate sobre a política no campo religioso, pois esses debates são feitos normalmente a partir do princípio da autonomia relativa da política. Isto é, a discussão sobre questões políticas são feitas com argumentos de racionalidade sócio-política e não submetidos ao discurso meramente religioso.
Para esses grupos (é preciso reconhecer que ocorre também em outros grupos político-religiosos), os valores religiosos (do seu grupo) devem ser aplicados diretamente a todos os campos da vida pessoal e social. E, em casos graves como aborto, ser impostos sobre toda a sociedade através das leis do Estado. Nesses casos, não seria misturar a religião com a política, mas seria a “defesa” dos mandamentos e valores religiosos; ou colocar a política a serviço dos valores religiosos (nessa discussão apresentados como “a serviço da vida”). Pois, nada estaria acima dos “mandamentos de Deus”. Desta forma não se reconhece a autonomia relativa do campo político, a dificuldade de se passar do princípio ético abstrato (do tipo “defenda a vida”) para as políticas sociais concretas, e muito menos se aceita a pluralidade de religiões com valores diversos e propostas de ação divergentes e conflitantes.
Esta é a razão pela qual esses grupos não entendem e nem aceitam a resposta dada por Dilma de que ela, pessoalmente, é contra o aborto, mas que ela vai tratar esse tema como um problema de saúde pública. Para ouvidos daqueles que crêem que não há ou não deve haver separação entre a saúde pública (o campo da política social) e a opção religiosa pessoal do governante, a resposta da Dilma soa como eu não sou contra o aborto, que logo é traduzido na sua mente como “eu sou a favor do aborto”.
E se ela é a favor do aborto, ela é contra a vida e, portanto, ela é do “mal”. Enquanto que, por oposição, o outro candidato seria do “bem”.
Reduzir toda a complexidade da “defesa da vida” -a que um/a presidente deve estar comprometido/a- à manutenção da criminalização do aborto (que é o que está discutido de fato neste debate sobre ser a favor ou contra o aborto) é uma simplificação mais do que exagerada. Simplificação que deixa fora do debate, por ex., toda a discussão sobre políticas econômicas e sociais que afetam a vida e a morte de milhões de pessoas. Mas é compreensível quando os cristãos têm muita dificuldade em perceber quais são os caminhos concretos e possíveis para viver a sua fé na sociedade, perceber em que a sua fé pode fazer diferença na vida social. Diante de tanta complexidade, a tentação mais fácil é simplificar o máximo para separar “os do bem” de “os do mal”.
Essa simplificação me lembra a pergunta que os meus filhos, quando muito pequenos, me faziam ao assistir um filme: “pai, ele é do bem?” Se sim, eles torciam por aquele que “é do bem” contra o “do mal”. Essa necessidade de separar os do bem e os do mal faz parte da condição mais primária do ser humano. O problema é que reduzir toda a complexidade da luta em favor da vida ao tema de ser favor ou contra a manutenção da criminalização do aborto é infantilizar a discussão política e, o que é pior, é infantilizar a própria religião que professa.
[Autor, em co-autoria com Hugo Assmann, de "Deus em nós: o reinado que acontece na luta em favor dos pobres"].
* Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo


sexta-feira, 1 de outubro de 2010

"Dei minha palavra por meio saco de cimento"

Era mais um dia de pegar transporte público para chegar ao trabalho. Enquanto eu ficava imaginando minhas justificativas para utilizar aquele sistema coletivo comecei a ouvir vozes bastante exaltadas nos bancos de trás do ônibus. E como boa antropóloga, aprendi a lição, "olhar, ouvir e escrever", assim, apurei o ouvido para acompanhar aquele diálogo. A conversa daqueles passageiros era sobre a eleição de 2010 e um deles estava muito empenhado em difamar os políticos das gestões atuais. Ele os chamava de falsos, enganadores e de corruptos. Por alguns segundos comecei a sentir simpatia por aquele homem e quando estava prestes a girar meu corpo no assento para lançar aquele olhar de cumplicidade que só nós eleitores tantas vezes enganados sabemos a hora correta de utilizar, aquele homem mudou o seu discurso.
Retomou sua fala dizendo que era natural do município de Parelhas, no interior do RN. E que um candidato local havia prometido ajudá-lo na reforma do seu banheiro. Segundo o homem, o cabo eleitoral passou na sua casa às vésperas da eleição e coletou o número do seu título de eleitor. Ficou a promessa que retornaria no dia da eleição com a ajuda para a tão necessitada reforma, e qual foi a surpresa daquele homem, quando o cabo eleitoral retornou com apenas meio saco de cimento. Como promessa é promessa, nada pode ser de fato cobrado, mas para aquele homem de Parelhas, seu voto valia a metade de um saco de cimento. Ele terminou sua fala dizendo "dei minha palavra por meio saco de cimento". E o silêncio voltou ao banco de trás do ônibus.
Fiquei imaginando o quanto um pouco de educação e informação podem fazer a diferença dentro de qualquer pleito eleitoral. Desde o século XVIII que os brasileiros lutam por participação política. Imagino os envolvidos na maior rebelião política brasileira, a Conjuração Baiana. Cipriano Barata e seus seguidores lutaram pelo direito à participação nos processos de decisão. Penso também nas revoltas do século XIX, como a Revolução de 1817. Era uma outra luta por igualdade, mas também por liberdade de expressão e mais uma vez, participação política.
Caso me permitam um salto no tempo, posso agora recordar da opressão imposta pelo regime militar e o movimento criado para derrubá-lo, seja a luta das guerrilhas urbanas, seja a reorganização da oposição no que ficou conhecido como "Diretas Já".
Quase 3 séculos de lutas e conquistas, mas o principal terreno continua sendo ocupado pela ignorância permissiva e passiva: a consciência do brasileiro.
Posso até criar o perfil daquele homem de Parelhas no ônibus e dizer que o mesmo deu a sua palavra "por meio de saco de cimento" por ser um trabalhador do campo, sem instrução e que ainda guarda muito da ingenuidade de tempos atrás. Seria uma justificativa muito leviana da minha parte.
Mas o que dizer de outros homens e mulheres, com diferentes níveis de formação educacional e cultural e moradores de todas as cidades deste imenso país que ainda trocam o seu voto por qualquer tipo de favorecimento?
Quando fiz 19 anos tirei o meu título de eleitor. De imediato recebi duas visitas: a primeira de um candidato a vereador, ele prometeu um cargo político para mim caso desse o meu apoio para ele. Ri daquela proposta e lhe disse que ainda era estudante universitária e não tinha nenhum interesse por administração pública. Em seguida, um parente muito próximo pediu para eu transferir meu título para uma cidade do interior e assim ajudá-lo a ser eleito. Minha recusa foi acompanhada de um sorriso para dizer que tenho a obrigação de participar da vida política do meu domicílio eleitoral, logo, não poderia atender sua solicitação.
Todos podemos ser convidados a vender, trocar ou barganhar nosso direito de escolha, mas todos devemos ser responsáveis pelas más escolhas que fazemos, levando em conta apenas nossas necessidades individuais e esquecendo que quatro anos de desastrosas políticas públicas significam quatro anos de atraso em setores estratégicos e vitais, como educação, saúde, transporte e moradia.
Precisamos reformar o pensamento, como já dizia Edgar Morin, e aproveitar para reformar as nossas instituições. A política é delas uma das principais, deve ser modificada para que sobreviva e nos conceda uma melhor vida no futuro.
Nossa palavra deve ser dada como garantia de um futuro melhor, até porque um vaso sanitário é fácil de encontrar, mas um bom político, precisa ser escolhido a dedo.

domingo, 27 de junho de 2010

Mostra Jean Rouch e o público natalense

Como natalense sempre ouvi queixas de muitas pessoas sobre os poucos programas culturais que a cidade nos oferece. Existem até aqueles que dizem preferir a cidade de Recife, enquanto pólo cultural e outros dizem que no eixo Rio de Janeiro-São Paulo é possível ver o mundo e muito de nós mesmos.
Eu já tive a oportunidade de vivenciar muitas experiências culturais. Começando por uma exposição sobre os Cavaleiros Templários, na fortaleza da cidade de Lagos, Portugal. Na Austrália, pude mergulhar na cultura nórdica com uma exposição no Maritime Museum em Sydney sobre os vikings. Também me encantei com a exposição Deuses Gregos, exposta na FAAP, na capital paulista. Lembro da visitação ao recém inaugurado Instituto Ricardo Brennand, em Recife e a possibilidade única de ver a obra de Albert Eckout no seu olhar sobre o Brasil holandês.
Entretanto o que despertou minha atenção e ocupou meus sentidos foi a Mostra Jean Rouch, exibida no Auditório do Sebrae, situado na Avenida Lima e Silva.
Durante seis dias foram apresentados mais de 35 filmes e documentários que apresentaram a importância da obra de Jean Rouch para a construção de um cinema etnográfico documentando de forma ficcional a realidade africana.
Na última sexta-feira pude me deliciar com Petit a Petit, produzido entre os anos de 1968 e 69, e mergulhar na cultura funerária dos Dogons com L'enterrement du Hogon e com Le Dama d'Ambara. E quantos mais desfrutaram destas obras do cinema francês e da visão do etnógrafo Jean Rouch? Naquela sexta-feira havia aproximadamente 12 pessoas no auditório do Sebrae. Apenas 12 pessoas aproveitaram naquela noite a mostra Jean Rouch e pelo o que conversei com um professor da UFRN, o público tinha sido pequeno em todos os outros dias.
Anos atrás precisávamos viajar para outros estados, regiões, países para desfrutar de boas mostras e exposições, mas quando as temos em nossa cidade apenas uns poucos percebem a importância disso.
O público natalense precisa despertar para o mundo, e enxergar além das fronteiras desta pequena província. O mundo nos é trazido e escondemos nossa cabeça dentro de um buraco? Jean Rouch me mostrou novos cenários e novas possibilidades do fazer artístico, principalmente sobre como fazer cinema, mas também mostrou que o natalense precisa muito perceber-se e encontrar-se além dos seus limites.

domingo, 28 de março de 2010

Em nome do Pai?

Nas últimas semanas, a mídia divulgou escandalosos casos de pedofilia envolvendo membros da igreja católica. Não é a primeira vez que denúncias sobre abusos sexuais são feitas contra sacerdotes católicos.
O último papa, João Paulo II, recebeu diversos relatos e confissões de padres pedófilos, mas a justiça do vaticano é diferente daquela que deve ser aplicada no mundo. Talvez por tratar-se da Cidade de Deus, mas num conceito diferente daquele pensado por Agostinho de Hipona. Será que as leis dos homens não servem para julgar os crimes dos filhos do Pai? Principalmente quando estes crimes são feitos à sombra Dele?
O papa Bento XVI mostrou a mesma indulgência em relação aos sacerdotes pedófilos. A sua omissão enquanto cardeal para averiguar e afastar os pedófilos do sacerdócio, atualmente é vista com bastante crítica por parte da opinião pública em todo o mundo.
Foi o tempo que todo desvio de comportamento era rigorosamente investigado pelo tribunal católico e as penas duras eram aplicadas com o rigor da irracionalidade. Um tempo de indulgências sem fim foi iniciado e "em nome do pai", crianças e adolescentes são violentados fisicamente e psicologicamente dentro das igrejas e suas instituições. Porém isto não é levado em consideração pelo alto clero, afinal os sacerdotes são pastores que precisam abraçar suas ovelhas.
Domingo de Ramos é um rito que inicia uma semana de reflexões para os cristãos de todo o planeta. Mais importante seria se cada membro da igreja voltasse os olhos para o presente e interpretasse com mais respeito à integridade da pessoa humana a passagem do evangelho que diz: Deixai vir a mim as criancinhas.

quarta-feira, 10 de março de 2010

M de Março, M de Mulher

No século XIX, auge da Revolução Industrial nos Estados Unidos, um grupo de operárias resolveu organizar-se para reinvidicar melhores condições de trabalho e salários mais justos. As mulheres foram trancadas num galpão da fábrica e a construção foi incendiada de forma criminosa, consumidas nas chamas, as ideias daquelas dezenas de mulheres espalharam-se como fumaça pelo mundo e no século XX foi instituído o Dia Internacional das Mulheres.
As relações entre os gêneros foram alteradas desde que a mulher tomou consciência do seu amplo papel na sociedade e passou a ocupar cadeiras nas universidades e postos de trabalhos.
Entretanto o preconceito, associado com a desinformação, impedem que milhões de mulheres sejam reconhecidas e respeitadas nos lares e no mercado de trabalho. Centenas de pesquisas confirmam que ao redor do mundo, a igualdade de fato entre homens e mulheres encontra-se muito distante do discurso proferido. É como se todos os dias fossem o Dia do Homem, e apenas o 08 de março fosse dedicado à mulher.
Nesta perspectiva, penso que março como maio são os meses com a letra M, M de mulher. A propósito, estas são as épocas quando a natureza feminina é mais lembrada e cantada, mas ainda longe de ser totalmente valorizada.
Em homenagem ao mês das mulheres e ao Oito de Março, transcrevo um texto atribuído ao escritor francês Victor Hugo. Parabéns à alma imortal feminina.
O Homem e a Mulher
O homem é o mais elevado das criaturas. A mulher o mais sublime dos ideais.
Deus fez para o homem um trono, para a mulher um altar; o trono exalta e o altar santifica.
O homem é cérebro, a mulher é coração; o cérebro produz a luz, o coração produz o amor, a luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é o gênio, imaculável, a mulher anjo indefinível.
A aspiração do homem é a suprema glória, a aspiração da mulher é a virtude extrema; a glória promove a grandeza, a virtude a divindade.
O homem tem a supremacia, a mulher a preferência; a supremacia significa força, a preferência representa o direito.
O homem é forte pela razão, a mulher é invencível pelas lágrimas; a razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos, a mulher de todos os martírios; o heroísmo nobilita, o martírio purifica.
O homem é um código, a mulher um evangelho; o código corrige, o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo, a mulher é um sacrário; ante o templo, nos descobrimos, ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa, a mulher sonha; pensar é ter larva no cérebro, sonhar é ter na fonte uma auréola.
O homem é um oceano, a mulher um lago; o oceano tem pérola que adorna, o lago poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa, a mulher o rouxinol que canta; voar é dominar o espaço, cantar é conquistar a alma.
O homem tem ym farol: a consciência, a mulher uma estrela: a esperança; o farol guia, a esperança salva.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra, a mulher onde começa o céu.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Uma coluna e uma memória

A expressão "lugares de memória" nos ajuda na compreensão da importância destas capacidades de lembrar e rememorar fatos, eventos, cheiros, texturas, matizes, sons. Tudo que constitui a vida humana tem um espaço reservado na memória.
O esquecimento é proposital, mas a memória é persistente. A própria história nasceu não apenas enquanto disciplina investigativa, mas também enquanto forma de registro das memórias de um povo ou de um rei.
Em janeiro de 2004 recebi uma tarefa interessante: recepcionar uma família italiana que estava em férias em Natal. A família era composta por um casal com quase 70 anos e duas filhas, acompanhadas pelos seus maridos.
Diferente dos roteiros que estão acostumados os turistas, lhes dei de presente uma excursão ao Centro Histórico de Natal e Corredor Cultural.
Seu Agostinho e dona Flora seguiam as filhas, me ouvindo com atenção, mas perguntando para uma delas a tradução de tudo que eu havia explicado. Partimos da Igreja de Santo Antonio, passamos pela Praça André de Albuquerque e entramos na rua Conceição.
Foi ali que aconteceu o reecontro de seu Agostinho com os seus lugares de memória. Eu estava lhes contando sobre o reide aéreo realizado por Ferrarin e Del Prete e sobre a chegada da coluna Capitolina, como presente do Duce Mussolini pela recepção dada aos pilotos italianos na nossa cidade, e de repente seu Agostinho transformou-se.
Ele desabou em si mesmo e disse: eu conheci o duce. Ele esteve na propriedade do meu pai e o cumprimentou por ter dado à Itália 13 filhos. O duce deu um cheque ao meu pai e um certificado e foi embora.
Naquela ocasião percebi que a memória nos surpreende e transporta. Estava ali, na rua da Conceição, enquanto historiadora e guia, mas pelas lembranças de seu Agostinho fui levada para um outro tempo, do qual ele tinha sido testemunha das obras de um homem e também de sua loucura fascista.
A Coluna Capitolina e seu Agostinho vinheram de tão longe mas se encontraram na mesma memória. Mussolini estava impregnado em ambos e assim continuará enquanto houver o lugar para esta lembrança.
Aproveite e faça um passeio pelo centro histórico de nossa cidade. Comece por onde quiser, lembre-se apenas de como faziam os antigos romanos: dextro pede.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O Haiti é bem ali

Em 1492 as caravelas da frota do italiano Cristóvão Colombo avistaram a área que hoje compreende o território do Haiti e da República Dominicana. No século XV a região era habitada por povos nativos de diferentes etnias que foram dizimados pelo colonialismo espanhol.
O sistema mercantilista exigia a implantação de um modelo produtivo conhecido como plantation, assim foi introduzida a monocultura na ilha juntamente com o trabalho escravo de origem africana. Estes elementos são essenciais para uma compreensão sobre o atraso econômico da área e a pobreza generalizada de sua população.
Na sua história política e econômica, o Haiti conheceu a dependência ao mercado externo e a relação estrita com primeiramente a Espanha, em seguida, a França e finalmente uma parceria com os Estados Unidos. Levantes, rebeliões, golpes de estado, ditaduras fazem parte da história do país que se balançava numa democracia extremamente tênue e mantida graças às forças militares de vários países, incluindo o Brasil.
Mas nesta semana os haitianos foram sacudidos por um evento que estava além de todas as estruturas pensadas e elaboradas ao longo do tempo: um terremoto de 7 pontos na escala Richter. Agora o equilíbrio ficou ainda mais distante.
A dimensão da tragédia e as perdas humanas e materiais comovem todos que acompanham o noticiário, mas o que mais me choca diante da catástrofe natural é a pouca responsabilidade social que os países desenvolvidos demonstram neste momento tão dolorido para uma nação em escombros. Espanha e França, antigas metrópoles da região enviam migalhas para amenizar uma dor e uma fome de proporções dantescas. Será que esqueceram tudo que foi escrito nas páginas da história?
Não estou enfatizando que a culpa pelo terremoto recaía sobre algumas nações européias, nem às crenças religiosas de origem africana, como apontou o infeliz pastor americano, trata-se de ajuda humanitária para um povo que teve muito de sua dignidade e humanidade roubada ao longo do tempo em guerras intestinais e lutas fraticidas, sendo muitos destes conflitos iniciados pela presença estrangeira na região.
Nada pode nos dar uma dimensão precisa das dificuldades que já existiam no Haiti e que agora foram drasticamente pioradas após os tremores.
Irônico é que na semana dos festejos natalinos, estava em um centro de compras da cidade acompanhando um casal de amigos idosos, quando vimos um moço vestido de papai noel e acompanhado por uma bandinha. Seu Antonio olhou toda aquela animação e disse: É natal aqui, mas no Haiti, será que tem natal? E ficamos ali alguns minutos em silêncio. Eu pensando o quanto o Haiti estava longe e pouco preocupada com algum tipo de engajamento político.
Mas o Haiti é bem ali. Cabe a cada um fazer sua parte para ajudar os outros na busca pelo equilíbrio diante de tantos abalos.
A Embaixada do Haiti recebe doações na seguinte conta: Banco do Brasil. Ag. 1606.3. Conta. 91.000-7. O Care internacional do Brasil disponibiliza esta conta para depósito: Banco Real/Santander. Ag. 0373. Conta. 5756365-0

domingo, 10 de janeiro de 2010

Les enfants de Timpelback

Durante quinze anos fui educadora de crianças e professora de história. Olhando em retrospectiva para a minha primeira turma (1995) e buscando compará-la com as últimas (2009), percebo o quanto as crianças mudaram, mas principalmente, o quanto os pais também se modificaram.
Imagino se Émile Durkheim havia previsto estas modificações quando fez suas primeiras análises sobre a função da escola na sociedade. Para o sociólogo francês, a instituição escolar tinha um papel coercitivo, auxiliando na regulação e controle do comportamento das crianças, desta forma preparando-as para viver em sociedade. As formas de percepção, os sentidos e ações são impostas às crianças, desde cedo, primeiro pela família e depois na escola, para garantia de uma vida coletiva mais harmônica. Segundo Durkheim, a educação tem como objetivo formar o ser social e prepará-lo para a convivência coletiva.
E é aqui que introduzo o filme Les enfants de Timpelback. Este filme francês parece uma fábula dos dias de hoje, envolvendo família, crianças e escola numa crise de valores e na inexistência de limites em todos os âmbitos.
Apresentando pais agressivos, mães ausentes, famílias flexíveis demais, o filme mostra o quanto a ausência de regras transforma as crianças em pequenos ditadores ou em pessoas sem autonomia.
A sala de aula é um espaço coordenado por uma professora que não compreende as necessidades individuais de seus alunos, como também não valoriza as especificidades presentes em seus processos formativos.
E quem são as crianças? Em Timpelback existem crianças dóceis e educadas, mas estas pertencem às famílias amorosas e equilibradas, já as crianças que demonstram problemas de comportamento e falhas na sua moral pertencem às famílias de pais ausentes do processo educativo de seus filhos, os mesmos não podendo servir como exemplos de conduta adequada, dificultando a internalização das regras desejáveis para uma vida mais harmônica em sociedade.
As crianças de Timpelback poderiam ser as crianças de qualquer cidade. A ficção faz apenas uma releitura da nossa educação em crise. Tanto a família quanto a escola esquecem seus papéis referenciais e deixam-se seduzir pelo psicologismo que impregna muitos profissionais da educação e faz eco no discurso de muitos pais.
Nos últimos anos de sala de aula, percebi o quanto a responsabilidade pela educação das crianças era colocada nas mãos dos educadores, para alguns pais competia somente deseducar.
Le enfants de Timpelback guarda um final previsível: a ausência de regras gera a necessidade de novas regras. Talvez o sociólogo esteja certo. Vale a pena conferir tanto a obra do pensador da educação quanto o filme. Boas reflexões para todos nós.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A ciência com consciência sobre 2012

Da Folha Online:
Cientistas criticam proposta de "2012" e indicam cenários de fim do mundo

DENNIS OVERBYE
do New York Times

A Nasa (agência espacial norte-americana) criticou a Sony em outubro por sugerir, em sua campanha publicitária para o filme "2012", que o mundo acabaria em 2012.

No ano passado, o Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares), também assegurou que o mundo não acabaria tão cedo --portanto, acho que tudo isso é uma boa notícia para quem fica nervoso facilmente. Com que frequência vemos duas instituições científicas top de linha como essas nos garantindo que está tudo bem?

Divulgação

Cientistas refutam proposta do filme "2012" e indicam outros cenários de fim do mundo; pesquisador aponta desesperados

Por outro lado, é meio triste, se você estava ansioso por tirar umas férias das prestações do imóvel para financiar uma última festança.

As declarações do Cern tiveram a intenção de aliviar temores de que um buraco negro sairia de seu novo Grande Colisor de Hádrons (LHC) e engoliria a Terra.

O pronunciamento da Nasa, na forma de vários posts em sites e um vídeo postado no YouTube, foi uma resposta a temores de que o mundo fosse acabar no dia 21 de dezembro de 2012, quando um ciclo de 5.125 anos conhecido como Grande Contagem no calendário maia teoricamente chegaria a um fim.

Filme

O burburinho em torno do fim dos dias atingiu o auge com o lançamento do filme "2012", dirigido por Roland Emmerich, que já trouxe desgraças fictícias para a Terra anteriormente, com alienígenas e geleiras, em "Independence Day" e "O Dia Depois de Amanhã".

No filme, o alinhamento entre o Sol e o centro da galáxia, no dia 21 de dezembro de 2012, faz com que o astro fique ensandecido e lance na superfície da Terra inúmeras partículas subatômicas ambíguas conhecidas como neutrinos.

De alguma forma, os neutrinos se transformam em outras partículas e aquecem o centro da Terra. A crosta terrestre perde suas amarras e começa a se enfraquecer e deslizar por aí.

Los Angeles cai no oceano; Yellowstone explode, causando uma chuva de cinzas no continente. Ondas gigantes varrem o Himalaia, onde governos do planeta tinham construído em segredo uma frota de arcas, nas quais 400 mil pessoas selecionadas poderiam se abrigar das águas.

Porém, essa é apenas uma versão do apocalipse. Em outras variações, um planeta chamado Nibiru colide com o nosso ou o campo magnético da Terra enlouquece.

Existem centenas de livros dedicados a 2012, e milhões de sites, dependendo de que combinação de "2012" e "fim do mundo" você digite no Google.

"Tolices"

Segundo astrônomos, tudo isso é besteira.

"Grande parte do que se alega que irá ocorrer em 2012 está baseada em desejos, grandes tolices pseudocientíficas, ignorância de astronomia e um alto nível de paranoia", afirmou Ed Krupp, diretor do Griffith Observatory, em Los Angeles, e especialista em astronomia antiga, em um artigo publicado na edição de novembro da revista "Sky & Telescope".

Pessoalmente, adoro histórias sobre o fim do mundo desde que comecei a consumir ficção científica, quando era uma criança. Fazer o público se borrar nas calças é o grande lance, desde que Orson Welles transmitiu a "Guerra dos Mundos", uma notícia falsa sobre uma invasão de marcianos em Nova Jersey, em 1938.

No entanto, essa tendência tem ido longe demais, disse David Morrison, astrônomo do Ames Research Center da NASA, em Moffett Field, Califórnia. Ele é autor do vídeo no YouTube refutando a catástrofe e um dos principais pontos de contato da agência sobre a questão das profecias maias prevendo o fim dos dias.

"Fico com raiva de ver como as pessoas estão sendo manipuladas e aterrorizadas para alguém ganhar dinheiro", disse Morrison. "Não há direito ético que permita assustar crianças para ganhar dinheiro".

Desesperados

Morrison afirmou receber cerca de 20 cartas e mensagens de e-mail por dia de pessoas até da Índia, assustadas até o último fio de cabelo. Em uma mensagem de e-mail, ele anexou exemplos que incluíam uma mulher perguntando se deveria se suicidar, matar sua filha e seu bebê ainda no útero. Outra mensagem veio de uma pessoa questionando se deveria sacrificar seu cachorro, a fim de evitar o sofrimento de 2012.

Tudo isso me fez lembrar os tipos de cartas que recebi no ano passado sobre o suposto buraco negro do Cern. Isso também era mais ficção científica do que fato científico, mas aparentemente não há nada melhor que a morte para nos aproximar de domínios abstratos como física e astronomia. Nessas situações, quando a Terra ou o Universo não estão nem aí para você e seus entes queridos, o cósmico realmente se torna algo pessoal.

Morrison disse não culpar o filme por todo o burburinho, não tanto quanto os vários outros divulgadores das previsões maias e a aparente incapacidade de algumas pessoas (e isso se reflete em vários aspectos da nossa vida nacional) de distinguir a realidade da ficção. Porém, ele disse, "meu doutorado foi em astronomia, não em psicologia".

Em mensagens de e-mail, Krupp disse: "Sempre estamos incertos em relação ao futuro, e sempre consumimos representações dele. Somos seduzidos pelo romantismo do passado longínquo e pela escala exótica do cosmo. Quando tudo isso se junta, ficamos hipnotizados".

O porta-voz da Nasa, Dwayne Brown, afirmou que a agência não faz comentários sobre filmes, deixando essa tarefa para os críticos de cinema. No entanto, quando se trata de ciência, disse Brown, "achamos que seria prudente oferecer um recurso".

Aquecimento global

Se você quer ter algo para se preocupar, afirma a maioria dos cientistas, deve refletir sobre as mudanças climáticas globais, asteróides ou guerra nuclear. Porém, se a especulação sobre as antigas profecias mexem com você, aqui estão algumas coisas, segundo Morrison e outros, que você deve saber.

Para começar, os astrônomos concordam que não há nada especial em relação ao alinhamento do Sol e do centro galáctico. Isso ocorre todo mês de dezembro, sem nenhuma consequência física além do consumo exagerado de panetones. De qualquer forma, o Sol e o centro galáctico não vão exatamente coincidir, nem mesmo em 2012.

Se houvesse outro planeta lá fora vindo em nossa direção, todo mundo já teria percebido. Quanto às violentas tempestades solares, o próximo auge do ciclo das manchas solares só ocorrerá em 2013, e será no nível mais suave, afirmam astrônomos.

O apocalipse geológico é uma aposta melhor. Já houve grandes terremotos na Califórnia, e provavelmente haverá outros. Esses tremores poderiam destruir Los Angeles, como mostrou o filme, e Yellowstone poderia entrar em erupção novamente com uma força cataclísmica, mais cedo ou mais tarde.

Nós e nossas obras somos, de fato, apenas passageiros frágeis e temporários na Terra. Porém, neste caso, "mais cedo ou mais tarde" significa centenas de milhões de anos --e haveria bastante aviso quando chegasse a hora.

Os maias, que eram astrônomos e cronometristas bons o suficiente para prever a posição de Vênus 500 anos no futuro, merecem coisa melhor.

O tempo maia era cíclico; especialistas como Krupp e Anthony Aveni, astrônomo e antropólogo da Colgate University, afirmam não haver evidências de que os maias achassem que algo especial ocorreria quando o marcador da Grande Contagem atingisse 2012. Existem referências em inscrições maias a datas antes e depois da atual Grande Contagem, afirmam os especialistas.

Sendo assim, continue pagando suas prestações normalmente.

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