quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Contextualizando a escola pública


As discussões em torno do papel da educação na sociedade e a função da escola na vida social surgiram a partir do século XVI, época na qual assistimos o crescimento do conceito de infância e a preocupação em dedicar uma educação formal e pública para as crianças. Esse período histórico é marcado pelo avanço do capitalismo comercial e ascensão da sociedade burguesa europeia, que por sua vez, influenciou na formação de um conjunto de valores, códigos e linguagens que foram essenciais para a consolidação do mundo moderno. Sobre o surgimento do ensino nas escolas, Jacques Gélis nos indica que (1991:324-325):
Assim se efetua uma dupla passagem: da família-tronco à família nuclear; de uma educação pública comunitária e aberta, destinada a integrar a criança na coletividade para que incorpore os interesses e os sistemas de representação da linhagem, a uma educação pública de tipo escolar, destinada a integrá-la, facilitando o desenvolvimento de suas aptidões.

Gélis (1991:323) afirma que até o século XVI as crianças recebiam uma educação dentro de seus lares e de acordo com os recursos disponíveis para cada família; entretanto essa educação privada era reconhecida por muitos como liberal e indulgente, o que motivou uma crítica ao papel dos pais enquanto educadores; no século seguinte surgiu uma corrente de pensamento que defendia a existência de colégios coordenados e dirigidos apenas pela igreja e pelo Estado, o que para Gélis (1991:324) significava que “colocar na escola equivale a tirar da natureza”.
Segundo Ghiraldelli Jr (2009) o ensino no Brasil se organizou ainda no período colonial inicialmente em torno dos jesuítas e de seu sistema do Ratio Studiorum (Ordem dos estudos), depois foi norteado pelas reformas pombalinas, quando os primeiros professores leigos foram contratados na colônia e por último conheceu os avanços propostos pela chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808.
 Entretanto o ensino só foi estruturado em três níveis durante a fase imperial: primário, secundário e superior. O próprio Ghiraldelli Jr afirma que (2009:29):  “Duas características básicas marcaram o ensino dessa época: o aparato institucional de ensino existente era carente de vínculos mais efetivos com o mundo prático e/ou com a formação científica; e era um ensino mais voltado para os jovens que para as crianças”.
Durante o período do regime republicano conhecido como “República Velha”, vigorou uma educação marcada pelo experimentalismo e pontuada pelos princípios da Ratio Studiorum como uma herança jesuíta. Apesar da difusão nos anos 1920 dos princípios da “escola nova”, apenas durante a década de 1930 o Brasil conheceu uma mobilização política em torno da implantação de um projeto educacional modernizante, implementada por intelectuais e educadores que assinaram o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Sobre o Manifesto, Ghiraldelli Jr. (2009: 41-42) nos indica que:
O “Manifesto de 1932” foi redigido por Fernando de Azevedo e, apesar de representar tendências diversas de pensamento – como as do filósofo John Dewey (1859-1952) e a do sociólogo Émile Durkheim (1858-1917) entre outros – compunha uma autêntica e sistematizada concepção pedagógica, indo da filosofia da educação até formulações pedagógicas/didáticas, passando pela política educacional.

Segundo Otaíza Romanelli (1986:160-161), foi apenas após o fim do regime de Estado Novo, instalado por Getúlio Vargas, que o Governo Federal procurou centralizar as diretrizes da educação pública, criando leis orgânicas para o ensino primário e secundário com validade em todo o território nacional. Sobre o ensino primário, o Decreto-Lei nº 8.529 de 02 de janeiro de 1946 demonstrou a influência do movimento renovador e dos princípios do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” de 1932.
Na década seguinte, o movimento de defesa da escola pública foi intensificado e o debate foi ampliado, englobando não apenas educadores, intelectuais e políticos, mas chamando para arena de discussão os professores, estudantes e sindicatos. Segundo Azanha (1999:167-169), a liderança dos debates coube ao estado de São Paulo, representado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, com destaque para o professor Roque Spencer Maciel de Barros que tratou de fazer a defesa do papel do estado para assegurar a liberdade de ensino e dessa forma “conduzir a educação sem a preocupação do proselitismo ideológico ou confessional e sem a ambição do lucro”.
Apesar da força das discussões e relevância dos debates, a oposição venceu com seu discurso de liberdade para a educação, garantindo dessa forma a permanência das instituições de ensino privadas e com apoio do investimento público. a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional aprovada em 21 de dezembro de 1961, representou um retrocesso ao anteprojeto original, comprometendo o desenvolvimento da educação brasileira diante dos interesses mercadológicos e financeiros pelas décadas seguintes.
O golpe de 1964 e a instalação do regime militar com duração de mais de 20 anos selou definitivamente os destinos do ensino público brasileiro, seja pela repressão aos professores, funcionários da educação e estudantes, seja pela ausência de políticas públicas voltadas para a educação básica. Nessa época, o governo federal procurou atender às exigências do mercado externo e promoveu uma educação de caráter profissionalizante de acordo com uma visão tecnicista do processo de ensino.
Apesar da ampliação do ensino superior com a construção de diversas universidades, os professores que demonstravam qualquer posicionamento político ou ideológico eram silenciados através de demissões, prisões ou aplicação de exílios. É o que podemos perceber analisando o parágrafo 1º do Art. 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968.[1]
O governo brasileiro, ainda na condição de um regime militar, realizou seus primeiros investimentos para aproximar os meios da informática e da comunicação do cenário educativo através de diferentes programas, preparando o terreno para a posterior aplicação de uma política pública para a educação tecnológica.
Voltando para a análise dos contextos históricos, com a abertura política e o processo de redemocratização do país a partir do ano de 1985, o novo regime republicano iniciou os debates para elaboração de uma nova carta constitucional. A Assembleia Nacional Constituinte votou a nova carta em 1988, na qual a educação aparece como um dos direitos sociais (Capítulo II, Art.º 6º). No capítulo III, do Título VIII, Da ordem Social, o texto constitucional garante que:
Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Nesse artigo, contemplamos uma visão integral do ensino, que permite o desenvolvimento das potencialidades do sujeito, agregado a conquista da cidadania e garantia de entrada no mercado de trabalho. Estes três enfoques também estão presentes na Declaração Mundial sobre a Educação para Todos, o que nos remete às necessidades educacionais, políticas e econômicas dos Estados.
Ainda dentro desse pressuposto, no Art. 214, o texto da Constituição indica como uma das metas a “promoção humanística, científica e tecnológica do País”. Ou seja, a educação sendo alçada ao patamar de função estratégica para o desenvolvimento nacional. Assim, estes objetivos foram ampliados na elaboração do Plano Nacional de Educação, já previsto na Carta Constitucional, e elaborado após a criação da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, estabeleceu importantes princípios para nortear a prática educativa no país. Entretanto, desde o período que antecedeu sua discussão, muitos atores sociais não foram devidamente envolvidos nos processos de debate e tomada de decisões que, caracterizam a formulação de uma Lei responsável por um setor fundamental da sociedade.
Das disposições gerais e como uma das diretrizes principais, a educação escolar aparece atrelada ao mundo do trabalho e das práticas sociais, o que é expresso no Artigo 22º: “A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”.
É interessante notar que o direito à cidadania e a inserção no mercado de trabalho aparecem como condições importantes, mas não atreladas no texto a uma formação continuada e de qualidade que seria proposta pela permanência do educando no ensino médio e posterior ingresso numa formação universitária. Dentro desse aspecto compreendemos que há de fato um compromisso, presente no texto da Lei, em preparar os jovens para uma entrada no mundo do trabalho, sem obrigatoriamente passarem pelo mundo acadêmico, o que reforça as críticas levantadas pelos pesquisadores sobre o teor neoliberal do texto da LDB, como Emir Sade (apud MÉSZÀROS, 2008: 15):
A educação que poderia ser uma alavanca essencial para a mudança, tornou-se instrumento daqueles estigmas da sociedade capitalista: “fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista, mas também gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes”.

Sobre o compromisso firmado entre os Estados e os interesses do capital, o filósofo húngaro István Mészàros afirma que é preciso reformular de maneira significativa a educação, sem entretanto esquecer de transformar a sociedade na qual as práticas educacionais “devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança” (2008:25).
Concluimos então que a a educação básica no Brasil sofreu diversas modificações, desde a educação pregada pela igreja católica até as reformas implementadas pela Constituição de 1988 e a LDB de 1996, entretanto, sabemos que a escola pública brasileira ainda precisa avançar bastante, corrigindo graves problemas e dessa forma, promovendo maior inclusão e participação tanto da família quanto do próprio educando em seu processo de ensino aprendizagem.


[1] O Presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o parágrafo 1o do Art. 2o do Ato Institucional no 5, de 13 de dezembro de 1968, decreta:
Art. 1º Comete infração disciplinar o professor, aluno, funcionário ou empregado de estabelecimento de ensino público ou particular que:
I - Alicie ou incite a deflagração de movimento que tenha por finalidade a paralização de atividade escolar ou participe nesse movimento; 
III - Pratique atos destinados à organização de movimentos subversivos, passeatas, desfiles ou comícios não autorizados, ou dele participe;
IV - Conduza ou realiza, confeccione, imprima, tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza.


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