Revoltas
e revoluções: uma breve reflexão
As aulas de história nas escolas
brasileiras de algumas poucas décadas atrás privilegiavam os aspectos político
e econômico do nosso processo histórico e pouco apresentavam do quadro social
que compunha esse cenário. É importante destacar que era prática corrente o
estudo sobre as revoltas brasileiras e a sua divisão, nos livros didáticos,
entre revoltas nativistas e revoltas separatistas. Entretanto, o estudo destes
movimentos políticos e reivindicatórios carecia tanto de uma análise
aprofundada sobre os contextos locais, como também de uma visão que nos
possibilitasse conhecer os atores sociais envolvidos nos processos.
A partir deste ponto, é importante lembrar
que nos livros didáticos, ainda é reservado um espaço limitado para a discussão
sobre as revoltas de caráter emancipacionista do começo do século XIX, e que
são essenciais para a compreensão do processo de independência e suas lutas nas
diferentes regiões do Brasil. Uma das maiores revoltas no Brasil Joanino foi a
Revolução Pernambucana, revolta de grande alcance e de importantes repercussões
na história nacional. Apesar do caráter local de suas demandas, a Revolução de
1817 foi gestada a partir de um ideário nascido no velho mundo: o pensamento
crítico iluminista.
Atmosfera
de revolução
Os
ventos revolucionários sopravam de longe e espalhavam ideais democráticos e
valores igualitários por diferentes partes do mundo. Estamos falando de um
período que foi chamado pelo historiador anglo-egípcio Eric Hobsbawm (2001) de
a “Era das revoluções”. Esta fase que compreende o final do século XVIII e a
primeira metade do século XIX é decisiva para configuração do mundo
contemporâneo.
O
nascimento dos ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” podem ser
acompanhados nas obras dos filósofos da conhecida Ilustração europeia, este
movimento é também chamado de Iluminismo e teve fortes repercussões no velho e
no novo mundo. Fortes (2004) indica em sua obra que, o Iluminismo representou
uma atitude cultural e espiritual que procurou elaborar uma nova doutrina
política e social, disseminando como princípios a universalidade, a
individualidade e autonomia do sujeito ou nação.
Podemos
afirmar que o princípio da autonomia individual e da nação espalhou-se no ar
após a Revolução Francesa de 1789, provocando o despertar de um sentimento de
nacionalismo e a busca pela ruptura com o sistema colonial no novo mundo. Assim,
no continente americano, explodiram diferentes revoltas, atestando a
fragilidade do sistema colonial e os seus limites. Para os grupos
revolucionários o Antigo Regime havia caído na França dos Bourbon e precisava
ruir na América Latina também.
O
Nordeste no olho da tormenta
No
século XVIII, o Brasil conheceu diferentes movimentos políticos, sendo dado um
maior destaque na historiografia para a Inconfidência Mineira e a Conjuração
Baiana, esta última com clara influência jacobina. Entretanto, no século XIX,
explodiu nas capitanias nordestinas um grande movimento que almejava o fim do
pacto colonial e a criação de uma república democrática: A revolução de 1817 ou
Revolução pernambucana.
É
interessante destacar que a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido a
Portugal e Algarve, no ano de 1808, nada alterou nas relações entre o Estado e
as províncias nordestinas. A situação de exploração, taxações indevidas e descaso
com os problemas locais apenas aprofundou os problemas da região, alguns deles
agravados por longos períodos de estiagem.
Muitos
dos relatos que conhecemos hoje sobre o período, encontram-se nas crônicas de
viajantes e são de grande importância para a compreensão das transformações
políticas, econômicas e sociais no Brasil do século XIX. Um exemplo
interessante é a forma como podemos perceber a atmosfera pré-revolucionária
(1815-1816) nas impressões do viajante inglês Henry Koster (1978).
Koster
afirma em seu livro Viagens ao Nordeste do Brasil, publicado em 1816 na
Inglaterra, que a revolução pernambucana podia ser considerada como a maior
insurreição no mundo luso-brasileiro. É importante lembrar que o cenário
político da época apresentava ao mesmo tempo as profundas contradições do
sistema colonial português e as ambiguidades presentes no processo de
independência, como bem aponta Mota (1986).
O
próprio Koster viajou por quase toda a região nordestina e esboçou um retrato
de sua população e dos entraves econômicos que a mesma vivia em função do
sistema colonial. Parte de suas observações foi sobre as relações econômicas
nas suas capitanias, defendendo a importância do crescimento da população livre
para incremento das transações comerciais.
Em
um trecho de seu livro, Koster trata da dependência dos nordestinos dos
produtos manufaturados ingleses (1978, p.161): “[...] os artigos de rouparia europeus só as pessoas ricas podiam
adquiri-los. Contudo, abertos os portos do Brasil ao comércio estrangeiro, as
mercadorias inglesas fizeram seu caminho por todo país e os negociantes são
numerosos”. Em outro trecho, ele revela sua estadia no engenho Cunhaú
(idem, p.169), no Rio Grande, de propriedade de André de Albuquerque e
Maranhão, futuro líder político da revolução nas terras potiguares.
Na
obra 1822: dimensões, do historiador Carlos Guilherme Mota, percebemos que o
envolvimento dos membros da Igreja católica no movimento foi grande. O próprio
Koster, testemunha dos primeiros momentos revolucionários, era amigo do
sacerdote João Ribeiro Pessoa
de Melo Monte Negro, um dos líderes principais do movimento na província
pernambucana. A revolução contava ainda com o padre Pedro de Souza Tenório, de
Itamaracá e o padre natalense Miguel Joaquim de Almeida Castro, também
conhecido como Frei Miguelinho e figura de destaque dentro do movimento.
Cada
sociedade elabora os heróis que acredita melhor representá-la, entretanto,
quando tratamos do quadro revolucionário que agitou o nordeste brasileiro na
primeira metade do século XIX, vemos que entre as principais lideranças dos
diferentes movimentos existiam participantes de uma elite intelectual, educada
dentro dos valores liberais e engajada em outro tipo de luta contra a repressão
e o obscurantismo presentes no pensamento político do regime monárquico.
Entretanto,
não só de padres se fez a participação na revolução, ela contou também com a
participação de diferentes grupos sociais, todos eles ligados às elites, como
comerciantes, proprietários rurais e militares de quatro diferentes capitanias
do nordeste: Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará. O aspecto em
comum era o descontentamento diante da
crise da economia colonial e a opressão exercida pelo governo monárquico.
A
revolta espalhou-se a partir de Recife e Olinda. O historiador Flávio Guerra
(1994, p.90) em sua obra História de Pernambuco, afirma que na época, a
capitania era governada pelo general Caetano Pinto de Miranda Montenegro, o que
despertava grande descontentamento na população principalmente pela cobrança de
altos impostos. A inventividade do povo do Recife criou uma quadrinha muito
conhecida pela tradição oral para o governador: “era Caetano no nome, Pinto na falta de coragem, Monte na altura do
físico e Negro nas ações”.
Muitos
pesquisadores atestam que a partir de 1800, sociedades secretas promoviam os
ideais liberais nas terras brasileiras. Fazia parte de seu programa, a defesa
da liberdade e o fim da fim da opressão política, a adoção do republicanismo,
com a elaboração de uma constituição que limitava os poderes e declarava os
direitos dos cidadãos. Dentro deste processo, é importante destacar o papel das
lojas maçônicas, do Seminário de Olinda e do convento Madre de Deus, no Recife,
na propagação das ideias iluministas.
O
Rio Grande não diferiu desta composição. Os seus nomes de destaque são do padre
Miguelinho e do latifundiário André de Albuquerque e Maranhão. Segundo Monteiro
(2007, p.82-83), o próprio líder político do movimento, era: “proprietário do engenho Cunhaú e coronel de
cavalaria miliciana”. Mas, quem são essas figuras e quais papéis exerceram
de fato dentro do movimento nas terras potiguares?
O
padre e o latifundiário
Por
sua vez, a capitania do Rio Grande era governada pelo capitão-mor José Inácio
Borges desde dezembro de 1816. Para o tradicional historiador Tavares de Lyra,
a eclosão da Revolução de 1817 pode ser considerada: “uma explosão de revolta
contra o absolutismo português”. (LYRA, p.216).
Como
já foi dito acima, a revolta contou com a participação de importantes membros
religiosos da igreja, agrupados em torno do Seminário de Olinda (SOUZA, 1999,
p.60-61). Dentre eles, o destaque local é Miguel Joaquim de Almeida Castro, o
padre Miguelinho.
Miguelinho
nasceu em Natal, no ano de 1768 e aos 12 anos foi para Recife completar os seus
estudos juntamente com alguns de seus irmãos. Foi ordenado pelos carmelitas,
tornando-se primeiramente Frei Miguelinho de São Bonifácio mas em 1800
solicitou sua secularização, tornando-se padre. Em viagem pela Europa, conheceu
o bispo D. José Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho, fundador do Seminário de
Olinda.
O
bispo o convidou para ensinar no Seminário de Olinda onde ocupou a cadeira de
retórica. No seminário aproximou-se mais das ideias liberais e passou a
frequentar sociedades secretas e reuniões que tratavam sobre o ideal de
independência. Sua importância no movimento em Recife é relevante, já que
participou ativamente, sendo nomeado secretário do governo provisório.
Apesar
da relevância de sua participação na Revolução de 1817, poucos historiadores
locais reconhecem o papel do padre Miguelinho como mentor intelectual do
movimento e reservam o destaque principal para o latifundiário André de
Albuquerque. O desfecho de sua
participação ocorreu com a sua prisão em sua residência e envio para a Bahia,
onde foi julgado e condenado ao fuzilamento no dia 12 de junho, na cidade de
Salvador.
No
Rio Grande, além dos abusos e desmandos cometidos pelo capitão-mor, havia ainda
um grande descontentamento local pelo fato da capitania viver subordinada à
Pernambuco. Na defesa do princípio de
autonomia, as elites locais se agruparam em torno de André de Albuquerque
Maranhão, figura controvertida que aparece dentro da historiografia tradicional
como o herói e mártir do movimento.
André era um rico proprietário de terras e
ocupava naquela época o cargo de coronel das milícias. Vários historiadores
apontam sua proximidade com as doutrinas liberais, principalmente pelo fato do
mesmo participar da maçonaria, porém, o que deve ser destacado é que outras
leituras são feitas hoje em torno do seu papel dentro da revolução e aos poucos
fica evidente o caráter elitista da sua participação dentro do movimento.
O
próprio movimento em si não contava com o apoio popular, pois o povo foi
excluído da pauta de discussões sobre os problemas políticos e econômicos que a
província atravessava. O governador Inácio Borges, quando informado da eclosão
do movimento, emitiu uma proclamação condenando o movimento. Alguns trechos de
sua proclamação revelam a sua percepção em torno dos primeiros ventos da
revolta: “tumulto popular”, “lamentável acontecimento”, “sedição”, “facciosos”,
“rebeldia”, “usurpado”, “espantosa anarquia”.
Mesmo
André de Albuquerque sendo feito líder da revolução no Rio Grande, o
historiador Tavares de Lyra (2008, p.234) afirma que ele não tinha aptidão
política e que o mesmo não apresentava capacidade suficiente para liderar um
governo revolucionário. André instalou seu governo provisório em 29 de março de
1817, não encontrando resistência de tipo algum. O historiador argumenta que a
própria composição do gabinete revolucionário atesta a falta de experiência e
força para garantir o triunfo dos ideais da revolta.
Apesar
da revolução em Pernambuco ter sido encerrada em 21 de maio de 1817, com a
delação e repressão por parte do almirante
Rodrigo José Ferreira Lobo, no Rio Grande, o governo revolucionário teve uma
breve duração e o movimento não durou mais do que 30 dias.
Os
contrarrevolucionários surpreenderam André de Albuquerque em seu gabinete, que
funcionava no prédio do atual Memorial Câmara Cascudo e no dia 25 de abril,
André foi deposto por um grupo liderado pelo seu partidário Antonio Germano. O
líder da revolução morreu no calabouço da Fortaleza dos Reis Magos em
decorrência de um ferimento provocado durante a sua deposição. Com André de
Albuquerque morria no centro da capitania o ideal liberal, entretanto, a luta
continuou na Serra de Martins e em Portalegre, quando finalmente foi debelada
toda resistência ao governo monárquico na capitania.
José
Inácio Borges foi restituído ao seu cargo de governador e ordenou a ocupação do
engenho Cunhaú. Ocorreu em seguida a prisão dos revolucionários com a perseguição
e repressão aos partidários de André de Albuquerque. Muitos deles eram membros
de sua família, o que levou alguns historiadores caracterizarem o movimento no
Rio Grande como “a revolta dos Albuquerque e Maranhão”.
Sobre
o desfecho do movimento na capitania, Monteiro (2007, p.84) afirma: “No Rio Grande, os que aderiram ao movimento
tiveram suas penas abrandadas, não tendo a Coroa portuguesa aplicado a pena de
morte ou de degredo a nenhum deles, ao contrário do que ocorreu em outras
províncias.”
Assim,
encerra-se uma página revolucionária nordestina: um padre iluminista e um
latifundiário liberal emprestaram sua força para um dos mais importantes
movimentos de emancipação da história do Brasil. Entretanto esta tradição
revolucionária ainda ofereceria resistência nos anos seguintes ao autoritarismo
do império.
Para
saber mais:
FORTES, Luiz Roberto Salinas. O iluminismo e os reis filósofos. 3ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
FUNDAÇÃO JOSÉ AUGUSTO. Centro de
estudos e pesquisas Juvenal Lamartine. Personalidades
históricas do Rio Grande do Norte. Natal: Fundação José Augusto, 1999.
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. São Paulo: Paz e
Terra, 2001.
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Recife:
Secretaria de educação e cultura, 1978.
LYRA, Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 3ª ed.
Natal: EDUFRN, 2008.
MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à história do Rio Grande do
Norte. 3ª ed. Natal: EDUFRN, 2007.
MOTA, Carlos Guilherme. 1822: Dimensões. São Paulo:
Perspectiva, 1986.
SOUZA, Itamar de. A revolução de
1817 no RN: André de Albuquerque e o
padre Miguelinho. Natal: Editora O Diário S/A, 1999. Coleção Diário do Rio
Grande do Norte. Fascículo 3.
VERSÃO ORIGINAL DA MATÉRIA PUBLICADA NA REVISTA LEITURAS DA HISTÓRIA. Nº 45, SETEMBRO/2011. ISSN: 1982-2464.