domingo, 17 de abril de 2011

Um prefácio para a Semana Santa


            Lembro das minhas primeiras experiências na infância com a Semana Santa. Via a minha avó materna começar uma série de rituais a partir do Domingo de Ramos. Naquela época éramos todos católicos, embora morássemos no bairro de N.S. de Nazaré, participávamos das celebrações na Igreja Católica do bairro da Cidade da Esperança. Todo aquele tempo ritual começava quando íamos para a missa portando ramos verdes para serem abençoados pelo padre local. Muitas vezes levamos Capim Santo, planta existente na frente de casa. Minha avó materna guardava as folhas bentas, para usá-las num tempo de escuridão e trevas profundas, como ela bem ressaltava, e o qual eu torcia que nunca chegasse, apesar de saber a localização exata da bolsa que mantinha as palhinhas bentas, um cordão de São Francisco[2], caixas de fósforo e velas abençoadas.
            Durante a Semana Santa ela redobrava as rezas e a partir da quarta-feira dava início aos jejuns leves, até chegar às interdições do banho, da música laica, da carne vermelha e do doce na quinta-feira e na “sexta-feira maior”, termo que ela usava para definir a época na qual Jesus havia sido crucificado. Ligar a televisão e o rádio era proibido também para nós crianças, que acabávamos por achar aquele tempo também tedioso. Cresci neste ambiente católico e fui de pouca observância destes ritos pascais, mas de todos os eventos daquela Semana o que mais me chamava atenção era a Malhação do Judas.
                        No princípio não entendia o entusiasmo dos primos para aquela brincadeira tão agressiva para mim, desprovida de qualquer sentido prático. Percebia que as outras meninas – na maioria primas, pensavam de forma bem parecida. Na rua de cima, todos os meninos que eu conhecia entre 08 e 14 anos de idade corriam durante o dia inteiro para juntar mulambos e acessórios velhos que seriam utilizados na confecção do boneco do Judas. Malhar o Judas no bairro de N. S. de Nazaré era coisa para meninos, cabendo às meninas apenas o papel de expectadoras.
            O que mais marca a minha memória daquelas Semanas Santas é a parte dita laica que envolve o período: a algazarra que tomava conta de todos, crianças e adultos após a rasgação do boneco e a festa feita com o “romper do Sábado de Aleluia”. Minha família, bastante numerosa reunia-se na casa de um dos tios para festejar a chegada do Sábado de Aleluia, com direito a muita bebida, comida farta e galinhas roubadas[3] dos quintais dos vizinhos menos quistos. No meio de tudo surge uma questão: Mas quem estava lembrando os motivos oficiais daquele tempo ritual? Talvez apenas a minha avó, sentada na sua cama, rezando pelos seus falecidos e agradecendo a Deus pela morte do Judas e ressurreição do Cristo.
            A minha entrada no catolicismo começou aos seis meses de idade, ainda não tinha cabelo suficiente quando fui batizada na Igreja de São Pedro, no bairro do Alecrim. Fui introduzida nas aulas de catecismo ainda muito cedo, mas não demonstrava os mesmos sentimentos pios que as demais crianças nutriam em relação ao credo cristão. Nas vésperas da Primeira Eucaristia, quando orientada para confessar meus pecados ao padre, perguntei para a catequista se não poderia fazer a minha confissão com a árvore do pátio da Igreja, pois sabia que a mesma estava ausente de pecados, diferente do pároco local. Cresci procurando manter a fé raciocinada, mas permanecia sem compreender os motivos que levaram todos aqueles garotos e adultos a realizarem aquelas práticas da Semana Santa, inclusive a Malhação do Judas.
            Na adolescência, após receber o sacramento da Crisma, dei início ao meu afastamento da Igreja Católica e assim, comecei a procurar os sentidos dados pelas outras pessoas e também por mim ao fenômeno religioso.
            A apostasia veio quando cursava a pós-graduação em Antropologia Social[4], sendo o evento central para este fato o Simpósio Nacional de História sobre Inquisição. Com o distanciamento foi possível relativizar o meu próprio ponto de vista sobre o fenômeno religioso e investigar mais sobre as representações construídas em torno dos ritos da Semana Santa.
            Este trabalho assinala um reencontro meu com ritos há muito tempo vivenciados e com a experiência de bairro e de suas elaborações internas sobre os eventos sociais. O rito, de outrora incompreendido, é nesta dissertação analisado à luz da antropologia, buscando-se antes definir suas origens históricas e identificar as diversas interpretações dadas ao ritual pelos moradores de outro bairro da cidade de Natal: As Rocas.
            O bairro das Rocas é o espaço para a observação do rito e dos processos de identidade construídos em torno dele. Como a comunidade interpreta a Malhação do Judas e como a mesma define suas relações com o objeto ritual são alguns elementos abordados nesta pesquisa. Uma outra questão pode aparecer na mente do leitor: Por que não pesquisar o bairro de N.S. de Nazaré? Em Nazaré a Malhação do Judas perdeu sua força na medida que aqueles garotos cresciam e outros assuntos tomavam conta de suas vidas. Quando deixei o bairro de Nazaré - como é popularmente conhecido, no ano de 1991, a celebração da Semana Santa já mostrava sinais de enfraquecimento. Não se via mais grandes festas para o romper do Sábado de Aleluia ou a mesma ansiedade na montagem e depois, malhação do boneco do Judas. Nas Rocas o rito é socialmente aprendido na infância e as interpretações infanto-juvenis não diferem muito daquelas elaboradas pelos adultos do bairro. Por hora, introduzo o leitor neste reencontro meu com a Semana Santa.



















[1] Prefácio da dissertação: Malhação do Judas: rito e identidade. UFRN, 2007.
[2]  Cordão adquirido numa viagem feita para um centro de romaria: Canindé de São Francisco-CE.
[3] Esta prática era realizada apenas pelos adolescentes e homens solteiros do bairro. Consistia no furto de aves de criação dos quintais e puleiros da vizinhança. O roubo era realizado quando muitas das pessoas encontravam-se nas comemorações pelo romper do Sábado de Aleluia. Apenas no Domingo da Ressurreição a comunidade ficava sabendo dos prejuízos causados aos criadores de aves. Os ladrões nunca eram denunciados pois a prática caracterizava-se dentro do grupo, como uma espécie de brincadeira.
[4] Especialização em Antropologia Social/UFRN (2003-2004).

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