O
homem é o único ser capaz de viver a experiência de simbolizar e construir
representações em torno da realidade que o cerca. A religião e os sistemas de
crenças são uma prova de ambas as capacidades humanas e refletem o valor dos
signos dentro do processo de formação das sociedades. Segundo Azevedo (2002: 13):
“A religião, desde a mais remota
antiguidade, tem sido para o homem um conjunto de sistemas codificados da fé,
da crença em uma instância e transcendente da materialidade, ligada à propensão
e capacidade básica humana de simbolização”.
Assim,
os símbolos fazem parte do pensamento religioso e carregam uma riqueza de
significados que nos ajudam a entender a formação das crenças. Um exemplo é a
simbologia da cruz. A cruz já era bastante difundida em vários sistemas de
crenças. Desde o Egito antigo que o símbolo da cruz já era aceito como uma
representação da vida divina e humana. Para os egípcios, a cruz ankh ou ansada
também simbolizava a chave do conhecimento e comunicava a relação existente
entre os dois elementos naturais: água e ar. Além dessas representações, a cruz
ankh era associada aos ritos funerários e representava uma passagem segura para
a vida pós-morte (MALLON, 2009, p.12).
No
cristianismo, é a partir do apóstolo Paulo que a cruz ganha o sentido da
ressurreição, simbolizando a redenção a partir da confirmação em nome de Jesus
Cristo. Manfred Lurker (2003:176), afirma que na Síria está a origem do costume
de colocar uma cruz de madeira no canto oriental dos cômodos simbolizando a
chegada do Messias. Os primeiros padres da igreja atribuíram à cruz a
representação da vitória sobre a morte e as trevas e assim permanece dentro do
catolicismo. Mas a cruz só é de fato incorporada na cultura cristã após a
abolição da punição da crucificação pelo imperador Teodósio Magno. Lurker
afirma ainda que a partir do século XI a cruz é incorporada aos altares das
igrejas e que assume características mágicas nas sociedades tradicionais.
No
Rio Grande do Norte, o município de Venha Ver possui a tradição entre os
moradores mais velhos do uso de um símbolo no qual eles depositam suas
esperanças para que o mesmo aja como um escudo lhes protegendo de todo o mal,
seja natural, como ventanias e tempestades ou de origem espiritual, como mau
olhado. Este objeto se configura como uma cruz latina trançada a partir das
palhas do coqueiro e de outras plantas encontradas facilmente na região como
capim santo, flor de laranjeira e cidreira. Este “amuleto” é depositado na
porta principal da casa para sinalizar proteção divina. (MENDES, 2004)
Em
Venha Ver os ritos da Semana Santa são vivenciados de forma coletiva e suas
práticas usuais são respeitadas e partilhadas pelas diferentes faixas etárias
da população, apesar da presença de depoimentos descontentes com o afastamento
voluntário dos ritos católicos, principalmente entre os jovens. Durante nossa
estadia naquele município observamos diversas práticas relevantes da Semana
Santa, tais como a confecção de uma cruz de palha no Domingo de Ramos (Mt
21:1-11), que é benta pelo padre local na Igreja Matriz de Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro. Retornando para casa, após a missa, as folhas e palhas
abençoadas são entrelaçadas no formato de uma cruz latina que é fixada na porta
de entrada (no caso, de Capim Santo), guardada para a realização de chás
curativos. A população local credita diversos poderes a esta cruz de palha e
confia que a mesma possa livrar a família e a casa de doenças, mau-olhado,
ventos fortes e tempestades lhe atribuindo méritos e qualidades, já que a cruz
seria portadora de energia benéfica e protetora. (MENDES, 2007).
Investigamos
a associação entre a cruz de palha com a prática judaica de colocar um mezuzá
(caixa contendo os trechos da shemá) na ombreira direita das portas, assumindo
este objeto o papel de “amuleto” para o lar e a família que o habita, da mesma
forma que o símbolo cristão no município de Venha Ver. Entretanto, através da
etnografia, os dados e depoimentos coletados confirmaram a força da religiosidade
católica na permanência dessa prática. Percorremos cinco comunidades do
município e só fizemos a observação de cruzes latinas, não havendo registro de
qualquer exemplar em forma de hexágono, o que confirma a nossa ideia de que a
simbologia da cruz é hábito cristão, característico do catolicismo popular, o
que afasta a hipótese de ser costume de origem judaica.
Referências
bibliográficas:
AZEVEDO,
Carlos do Amaral. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova
fronteira, 2002.
LURKER,
Manfred. Dicionário de simbologia. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
MALLON,
Brenda. Os símbolos místicos. São Paulo: Larousse do Brasil, 2009.
MENDES,
Andreia Regina Moura. Venha Ver a cruz de palha e seus poderes: uma referência
ao mezuzá judaico? Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2004.
Monografia apresentada na especialização em Antropologia Social-PPGAS.
MENDES,
Andreia Regina Moura Mendes. Malhação do Judas: rito e identidade. Natal:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2007. Dissertação apresentada ao
mestrado em Antropologia Social- PPGAS.